Abro um livro empoeirado. Lembro-me de sua aquisição. Foi numa feira na Cinelândia nos anos 70. Foi difícil encontrá-lo, tudo estava censurado. Era até perigoso conduzí-lo. Sempre havia alguém por perto monitorando as compras. Tudo era tão cinzento que chegávamos a ter mais medo do que realmente era necessário. Mas seria fatal ser flagrado portando um livro de Carpeaux. Quando o ví exposto na banca da Civilização Brasileira, confesso que estanquei de horror. Olhei para os lados, fitei o vendedor que balbuciou algumas palavras, que se embrenharam no silêncio do meu temor. Ali, em plena ditadura, tudo sendo vendado e "A batalha da América Latina", um livro magistral, um livro anti-americano, um livro tipicamente de esquerda, escrito por um comunista, por um intelectual detestado pelo poder. O livro parece que apontava para os meus olhos covardes. Virei meu olhar para todos os lados possíveis, mirava as pessoas de alto a baixo...De repente, deu-me ânsias de fugir, de ir para a outra banca e esquecer o que observara. Ora, pensei, era apenas um livro, apenas mais uma abordagem histórica do imperialismo norte-americano. Mas meus pés parece que estavam cimentados ali, em frente à banca. De repente, receei que alguém pudesse comprá-lo. Toda nuvem de incertezas e medo assolavam a minha mente. Perguntei-me: por causa de um livro? Tudo isso por causa de um livro? Imediatamente pensei que muita gente foi presa por causa de um livro, muita gente sofreu torturas por causa do que escrevera em seus livros. Gelei literalmente. Olhei para trás e vi o prédio do Cinema Odeon fulgurante, lindo, imponente...Não me lembro do filme que estava em cartaz. Pessoas passavam, pessoas paravam e o livro me desafiava. O vendedor me observava e creio que deve ter feito várias conjecturas a meu respeito. Na minha mente algo dizia: compre o livro, leve-o, não seja um verme medroso...

Aqueles tempos eram assim. Tempos obscuros, mas que nos incentivavam a transgredir, a não nos conformarmos com o "status-quo". Hoje os jovens estão pensando no "se beber não dirija" e os "presos" daquela época, os que fugiram do país, estão milionários por escreveram livros, ou produziram filmes, ou entraram na política, ou receberam a "bolsa anistia". Mas eu comprei o livro, o li, e o reli, e o reli, e o reli, com a ânsia que nos proporciona o triunfo em desobedecer. Hoje, me deparo com ele, em minha estante, envolvido numa crosta de pó que sempre vem, depois que limpamos a anterior que se formou. Otto Maria Carpeaux já não está entre nós, mas sempre permanecerá vivo nas idéias que plasmou em um livro que um dia me custou suor, desespero, medo e, só eu sei, o maior gozo: a vitória de tê-lo comprado.
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