quarta-feira, 4 de agosto de 2010

O homem que não falava - um conto.

Calou-se de repente. Resolveu não falar mais. Andaria apenas observando os dias, caminhando pelas ruas e escrevendo. Falar, só consigo mesmo. Assim foi. Ninguém percebeu a mudança, até porque se expressava raramente. Todos já o conheciam como uma pessoa intimista. Realmente ele não se preocupava muito com a presença dos outros, fosse no colégio ou no trabalho. Agora ele chegava, balançava a cabeça como um cumprimento e fazia o que tinha de fazer. Ninguém mais conheceu o timbre de sua voz. Obviamente, como fruto desse comportamento, nunca conheceu o amor. Nunca viveu momentos de paixão, nunca conseguiu olhar nos olhos de ninguém. Dizem os mais antigos que, ao contrário do que é conhecido, foi um fracasso de amor que se passou há muitos anos em sua vida que o tornou assim. Mas são apenas comentários fortuitos, meras conjecturas. Em sua casa, onde mora em completa solidão, não se ouve o canto de pássaros, tampouco latidos de cães. Contraditoriamente ouve-se música. Uma música quase sempre suave, pianística, que vem dos CDs de clássicos que costuma colecionar. Esse som erudito é a única presença da beleza e da poesia naquele lugar. Curiosamente as músicas são todas instrumentais. Não há canção lírica. Ele não gosta de ópera porque não gosta da voz humana. O tempo passa no silêncio de sua mudez. Os carteiros e os vizinhos desenvolvem um ritual próprio para poderem se comunicar com ele. Olham-no. Se há algo a falar, a “comunicação” é rápida e sem espera de retorno. Ele escreve coisas. Usa folhas soltas que depois são guardadas com cuidado em um baú antigo que ganhara de seu pai. O que escreve é um grande e eterno mistério. É a maneira de falar por escrito. Certa vez ele esqueceu a porta de sua varanda entreaberta e um vizinho tentou avisá-lo. Nessa hora, ele escrevia, mas quando percebeu aquela presença inesperada rasgou o papel em pedacinhos. Ato contínuo, fechou a porta com rapidez, praticamente no rosto do homem que morava ao lado de sua casa. Estive pensando que algumas vezes vemos algumas películas com personagens desse tipo. Não que sejam inteiramente mudos por decisão própria, mas com atitudes bizarras e incompatíveis com um convívio humano saudável. Ele resolveu se calar para sempre. Não sabemos o seu nome, desconhecemos seus objetivos de vida, o que faz e o que pensa fazer. Hoje amanheceu com o sol a pino. Pela calçada ele caminha com um boné branco e inteiramente limpo. Para onde irá? Para que sair? Olho para sua casa e imagino o que haverá naquele velho baú. Sinto vontade de ler as folhas que lá estão. Ou será que não há nada escrito e foi tudo fingimento por gestos aleatórios? Como inventor do personagem também não posso destapar todos os seus segredos. Como revelar a vida de alguém que está inteiramente dependente dos meus desejos de invenção? Calei-lhe a própria vontade. Dei-lhe uma vida inócua. Como trair o meu personagem? Como expor suas vísceras? Não tenho coragem de trazer à luz as profundezas de sua alma. Amanhã vai ser um novo dia. Pode ser que eu empreenda mudanças radicais nessa sua vida árida e dê-lhe um outro destino. Quem sabe remetendo-lhe ao século XIX ou durante a Segunda Grande Guerra. Seria uma experiência incrível introduzi-lo nas trincheiras, no front, para que possa viver aquela realidade sangrenta. Dar-lhe-ía uma vida longa, sobrevivendo às batalhas, fazendo-lhe ganhar medalhas, socorrer feridos e voltar incólume para casa. Quem sabe fazendo-lhe um paroleiro. Mas, segredando ao leitor: a minha verdadeira vontade, é que tudo isso não sofra qualquer tipo de transformação. Constituí esse homem para viver calado, para sofrer calado, para manter o mistério de sua identidade, vivendo os seus dias como um ermitão, enclausurado em meus delírios de escritor.

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